Sinopse
A mistura de sistemas jurídicos é uma realidade global em expansão. No Brasil observamos o surgimento de um modelo contemporâneo de jurisdição. Apesar das nossas raízes romano-germânicas que nos legaram o civil law, temos Poderes independentes e Judiciário promovendo o controle de constitucionalidade das leis, vinculação ao sistema de precedentes (stare decisis), além da recente incorporação de métodos de condução do processo e colheita de evidências que requerem impulso e colaboração das partes, todas características típicas do common law. A integração do civil law e do common law, que também pode ser lida como a integração de códigos e casos, aparentemente fornece as ferramentas para o desenvolvimento de um sistema aprimorado, ao garantir que a segurança prevista na lei se confirme no resultado do julgamento. No presente estudo, buscamos nos sistemas denominados jurisdições mistas, que combinam as duas maiores tradições do mundo, luzes para aclarar nossa compreensão sobre a transformação pela qual passamos, com a certeza de que não se trata de sistemas excludentes, mas complementares.
Prefácio
O ordenamento brasileiro experimenta na atualidade um verdadeiro turning point. O formalismo e o legicentrismo, heranças ibéricas que resistiram a tantas reformas do direito pátrio, vêm cedendo lugar, de forma mais acelerada, a um método de realização da justiça baseado no case law e na aplicação direta de preceitos vagos contidos na Constituição. Essa marcha em direção ao common law ocorre em meio a um movimento de convergência entre diferentes sistemas no Direito Comparado. Países como a Inglaterra, berço da tradição anglo-saxã, introduziram mudanças até então típicas do civil law, aumentando as prerrogativas do Juiz e atribuindo-lhe maiores instrumentos de gestão processual. Em nossa nação, as recentes inovações buscam ampliar a esfera de atuação das partes, privilegiando uma visão liberal em detrimento da concepção excessivamente publicista e paternalista do processo, bem como objetivam fornecer aos jurisdicionados uma estrutura coerente e racional de aplicação do direito, a fim de evitar que o número excessivo de processos sobrecarregue Juízes e que decisões contraditórias prejudiquem os cidadãos.
O Código de Processo Civil de 2015 é um ícone da transformação do sistema jurídico brasileiro, mormente no que concerne ao papel central que os precedentes passam a assumir no cotidiano dos operadores do direito. A elaboração do novo diploma legal se baseou na ideia, capitaneada por Richard Posner, da jurisprudência como um estoque de capital – é dizer, um conhecimento acumulado de tarefas passadas, que incrementa a produtividade do Judiciário, facilitando a tomada de futuras decisões, e produz utilidade a potenciais litigantes, em formato de informações sobre suas obrigações jurídicas. Um ordenamento que preza pela observância dos precedentes potencializa a segurança jurídica – essencial à atuação dos agentes econômicos –, mitiga as chances de erros judiciários e reduz o número de litígios, estimulando o engajamento em atividades produtivas à luz da confiança na escorreita aplicação do direito.
A presente obra, cunhada pela pena segura de Fabíola Utzig Haselof, atinge com sucesso o propósito de elucidar, ordenar e nos prover de profunda compreensão sobre os desafios apresentados pela combinação dos sistemas jurídicos romano-germânico e anglo-saxão, explorando valiosos exemplos de Direito Comparado e lançando luzes sobre o caso brasileiro no contexto das chamadas “jurisdições mistas”.
Aquele que degusta as lições expostas com suavidade pela autora pode não atentar para a complexidade da empreitada por ela assumida. Um dos maiores estudiosos do tema, Mirjan Damaska, ao identificar as mutações e mútuas influências entre os ordenamentos, sugeriu o abandono da separação entre os sistemas adversarial e inquisitorial, decorrentes da dicotomia common law e civil law, adotando classificação de dois formatos ideais de processo, quais sejam, o de solução de conflitos (conflict-solving type of proceeding) e o de implementação de políticas públicas (policy-implementing type of proceeding). Não é sequer necessário o aprofundamento das ideias do Professor da Universidade de Yale para perceber a árdua missão do acadêmico que se propõe a estudar o fenômeno da interação entre os dois principais sistemas jurídicos conhecidos.
Nada obstante as adversidades inatas à matéria, a talentosa autora as enfrentou com brilhantismo, permitindo ao leitor acessar com simplicidade as bases do que denominou “modelo contemporâneo de jurisdição”. O raciocínio observado durante todo o trabalho é linear. Começando pelo escorço histórico sobre as origens das tradições do civil law e do common law, segue-se a determinação das características da jurisdição mista e as formas assumidas por essa espécie no Direito moderno. Os diferentes fatores que propiciam a mistura das jurisdições são sistematizados com maestria, incluindo aspectos geopolíticos e econômicos. Relativamente à realidade brasileira, é traçado percuciente paralelo entre a expansão da jurisdição constitucional provocada pelo advento da Carta de 1988 e a adaptação do arcabouço processual aos consectários da constitucionalização do direito, culminando com a paradigmática aprovação do novo Código de Processo Civil.
Diversas inovações do Código de 2015 inspiradas na tradição anglo-saxã são destacadas na obra, como as modificações nas regras de produção probatória para aumentar o protagonismo das partes na colheita dos elementos que informarão a convicção do julgador e o destaque aos métodos alternativos de solução de controvérsias. Análise específica é dirigida a uma das mais importantes inovações do novel diploma processual: o sistema de precedentes vinculantes, também designado pela parêmia stare decisis et non quieta movere. Não apenas as especificidades dessa técnica de gestão do aparato jurisdicional são categorizadas e pormenorizadas, senão também são abordados os óbices estruturais e culturais nos quais a implementação do novo Código pode esbarrar no caminho para a sua concreta efetivação no Brasil. Com efeito, nenhum sistema pode funcionar quando os sujeitos que o compõem se comportam como atores isolados, integrantes de uma orquestra na qual só há maestros, mas que, por isso mesmo, não produz espetáculo. Sem o cuidado na fundamentação de precedentes com parâmetros claros e objetivos, sem a fidelidade de cada órgão jurisdicional ao case law e sem a compreensão de que o overruling é medida excepcionalíssima e deletéria quando mal utilizada, o resultado será um Judiciário sem credibilidade e uma sociedade sem segurança jurídica.
Adianto ao leitor que a esperada inquietação decorrente das tormentosas questões aqui suscitadas dará lugar, com o passar das páginas, à convicção e à sabedoria que apenas o conhecimento de ponta pode proporcionar. A excelência do material que ora se tem em mãos pode ser creditada à seriedade acadêmica e à experiência judicante que qualificam a autora. Por tudo isso, trata-se de um livro para manter na estante em posição conveniente às leituras e releituras, certamente constantes e sempre recompensadoras.
Ministro Luiz Fux
Brasília, 21 de julho de 2017.
Apresentação
A transposição das fronteiras no âmbito do conhecimento vem sendo uma tendência atual, cada vez mais presente também na área do Direito e que vem sendo especialmente sentida no Direito Processual. Dentro desta perspectiva, ocorre o fortalecimento do Direito Processual Comparado e a aproximação, em termos de estudo e aplicação, entre institutos de sistemas diferentes e países distintos. Neste cenário e considerando as necessidades vivenciadas no contexto processual brasileiro, o papel da jurisprudência e dos precedentes vai assumindo uma importância crescente no quadro nacional, culminando com a edição do novo Código de Processo Civil, de 2015. Como tive a oportunidade de assinalar anteriormente, “pode-se afirmar que os precedentes passam a ter mais significado para a definição das normas de conduta, no cenário atual, não apenas nos países de common law, mas também para os ordenamentos considerados de civil law. Em termos formais, o ordenamento processual brasileiro se refere especialmente à jurisprudência ou apenas a um dos seus instrumentos de exteriorização: a súmula. Entretanto, a evolução do sistema pressupõe o amadurecimento do tratamento conferido tanto à jurisprudência quanto aos precedentes. Isso porque ambos representam estágios correlacionados do fortalecimento do pronunciamento judicial, envolvendo as suas diversas qualidades. Dentro deste cenário, as decisões judiciais passam a ter uma importância não apenas sob o prisma da resolução do caso concreto, mas como fixadoras de padrões de conduta.”
O livro JURISDIÇÕES MISTAS: UM NOVO CONCEITO DE JURISDIÇÃO, de Fabíola Utzig Haselof, por certo, é um amplo, profundo, inovador e qualificado trabalho escrito sobre este relevante e atualíssimo assunto. A autora conseguiu reunir na obra aspectos teóricos e práticos fundamentais sobre a questão. Discorreu, assim, inicialmente, sobre a tradicional classificação e divisão entre as famílias de common e civil law, procurando mostrar as respectivas distinções e apromoximações. Procurou estabelecer, em seguida, a definição deste fenômeno denominado “Jurisdição Mista”, indicando as diversas modalidades de combinação resultantes da confluência entre as respectivas famílias. O estudo é precioso. No Brasil, o estudo do Direito é realizado, por vezes, sem a necessária análise e comparação com os ordenamentos estrangeiros. A própria aproximação do sistema brasileiro com institutos de outros países, especialmente do common law, é apontado como se fosse um fenômeno isolado.
Fabíola Haselof foi muito além do lugar comum, pesquisou e encontrou outras nações que viveram mais intensamente esta experiência. Trouxe à luz estudos que também indicavam a ocorrência da integração de culturas e de instituições jurídicas oriundas da diversidade, decorrente de vivências históricas diversas. Procurou analisar as características centrais de cada família, bem como as suas variações. Demonstrou que as jurisdições mistas são um fenômeno global, permeando realidades jurídicas em localidades espalhadas pelo mundo: Louisiana, Quebec, Porto Rico, África do Sul, Zimbabwe, Botswana, Lesotho, Swaziland, Namíbia, Filipinas, Escócia, Israel, são alguns exemplos de jurisdição mista. Neste contexto de aproximação, a autora retrata o constitucionalismo contemporâneo no Brasil e o deslocamento da racionalidade centrada na lei para o precedente. Em seguida, expõe a concepção dos precedentes judiciais como sistema, o seu significado e enquadramento como fonte do direito, o debate comparativo entre o precedente e a jurisprudência, o caráter vinculativo e persuasivo, a questão da eficácia vertical e horizontal, bem como diversos aspectos centrais. Buscou dissecar o instituto dos precedentes, fazendo um paralelo da sua utilização nos países de common law e pelo direito brasileiro. Tratou, assim, do cotejo entre precedentes, decisão judicial e súmulas, os elementos do precedente, abordando a ratio decidendi, o obter dictum, assim como as técnicas de distinguishing e overruling. Por fim, mergulhou na discussão dos aspectos nacionais relacionados ao precedente.
A autora tratou com amplitude e profundidade o assunto abordado, sistematizando a matéria com senso crítico e demonstrando elevadíssimo conhecimento em torno do tema. O resultado foi esta belíssima obra, que considero leitura importante para os profissionais e estudiosos do direito.
Fabíola Utzig Haselof é uma brilhante magistrada federal, com reconhecimento na área jurídica. Mestre em Direito pelo respeitado Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Universidade Estácio de Sá (com conceito 5 na última avaliação da CAPES, o melhor no Rio de Janeiro na área jurídica, juntamente com a UERJ e a PUC), a autora cursou disciplinas que ministrei no respectivo programa. Na ocasião, pude testemunhar o seu interesse e participação destacada e inteligente em torno dos diversos assuntos tratados. Tive a satisfação de funcionar como o seu orientador neste curso de mestrado que resultou na dissertação defendida perante a qualificada Banca integrada pelos Professores Humberto Dalla e Theóphilo Antonio Miguel, tendo sido aprovada com distinção, louvor e recomendação para a publicação, que ora se realiza pela conceituada editora Fórum.
Sinto-me honrado e distinguido com o convite formulado para a orientação da autora no seu mestrado, bem como para efetuar a apresentação do presente livro. Devo, contudo, conter-me na tarefa, pois não há comentário que se faça suficiente para substituir o bom vinho ou a boa obra. Recomendo, assim, em benefício do próprio leitor, que se passe, imediatamente, a sorver o resultado desta boa colheita.
Rio de Janeiro, 1º de agosto de 2017.
Aluisio Gonçalves de Castro Mendes
Desembargador Federal.
Especialista, Mestre, Doutor e Pós-Doutor em Direito
Professor Titular de Direito Processual Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Estácio de Sá (UNESA)
Diretor do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual (IIDP), do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto Carioca de Direito Processual (ICPC)
Membro da Associação Teuto-Brasileira de Juristas e da International Association of Procedural Law (IAPL)
Posfácio
É extremamente recompensador poder fazer parte de uma banca que examina um trabalho consistente e inovador. Aliando uma série de conceitos dispersos e, acima de tudo, conferindo uma visão sistêmica ao tema, Fabíola Utzig Haselof se debruça sobre um dos temas mais relevantes no cenário constitucional-processual na atualidade: as jurisdições mistas. Seu jeito de escrever e suas lúcidas considerações conquistaram a banca examinadora de sua dissertação de mestrado, da qual tive a honra de fazer parte.
O movimento iniciado pelos estudiosos do direito internacional e que mais tarde evoluiu para o direito comparado, chega ao seu ápice quando a pesquisa acaba, naturalmente, criando um gênero novo e híbrido.
Com efeito, Mauro Cappelletti já havia previsto esse movimento (Dimensioni della Giustizia nelle società Contemporanee, Bologna: Mulino, 1994, p. 79), e fez com que outros autores começassema buscar, na área do direito processual, um conjunto de regras que pudessem ser aplicáveis às diversas jurisdições (HAZARD Jr, Geoffrey; TARUFFO, Michele; STURNER, Rolf; GIDI, Antônio. Principles and rules of Transnational Civil Procedure: Introduction to the principles and rules of Transnational Civil Procedure. New York University Journal of International Law and Politics. New York, vol. 31, 2001).
Contudo, me parece que superamos mesmo as previsões mais otimistas. É inegável a reciprocidade que exsurge a partir do método comparado. Tem-se uma verdadeira mistura. Nas palavras da autora, “a mistura de sistemas se apresenta como uma tendência global. Especificamente a mistura decorrente das jurisdições mistas, que consiste na combinação do civil law com o common law, aparentemente, oferece as ferramentas para o desenvolvimento de um sistema melhor “.
Até porque, como precisamente apontado pelo Min. Fux no prefácio desta obra, “nenhum sistema pode funcionar quando os sujeitos que o compõem se comportam como atores isolados, integrantes de uma orquestra na qual só há maestros, mas que, por isso mesmo, não produz espetáculo”.
Este livro, sem dúvida, veio inaugurar uma nova era. Desejo a todos uma excelente leitura.
Rio de Janeiro, julho de 2017.
Humberto Dalla Bernardina de Pinho
Professor Titular de Direito Processual Civil na UERJ, Estácio e Ibmec
Martin-Flynn Global Law Professor (University of Connecticut School of Law)
Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro
Depoimentos
Luiz Fux
“A excelência do material que ora se tem em mãos pode ser creditada à seriedade acadêmica e à experiência judicante que qualificam a autora.”
Aluisio Mendes
“Fabíola Haselof foi muito além do lugar comum, pesquisou e encontrou
outras nações que viveram mais intensamente esta experiência.”
Humberto Dalla
“Este livro, sem dúvida, veio inaugurar uma nova era.”
Autora
FABÍOLA UTZIG HASELOF
Juíza Federal Titular no Rio de Janeiro.
Doutoranda em Direito Processual pela Universidade
Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Mestre em Direito pela UNESA/RJ.
Graduada em Direito pela UERJ.
Atualmente é Juíza Federal Convocada pelo Tribunal
Regional Federal da 2ª Região
atuando nas Turmas Especializadas em Direito Tributário.